Páginas

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Uma lágrima em veludo

lividez é
lágrima que cai

cansada
negada
sedada.

lividez é
veludo escuro que escorre

na bochecha
no pescoço
e alma.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Sobre um blues tragicômico

minha história com o blues é mais longa e mais bonita do que qualquer relacionamento que já tive

Sobre espíritos livres

ser levada por tudo - menos pela inércia
olhos abertos, alma errante
um espírito livre que vai para todos os lados,
mas mantem-se andando
um viajante no trem,
que pula, gira, dança, corre
um viajante que não quer olhar a vida
não quer olhar
pela janela do trem.

A Borboleta Azul

A memória mais antiga que eu tenho de minha avó é de ela me mandando parar de girar.

E eu girava, girava... Uma mão segurava no poste branco da casa de meus avós e o resto do corpo ficava solto, rodando e rodando. E ela dizia:

- Alessandrinha! Para de girar, tu comeu faz pouco, não vai te fazer bem!

ou ainda:

- Alessandrinha! Para de girar, eu estou ficando tonta!

E eu parava por um tempo e depois recomeçava. É o mais distante que consigo chegar nas memórias sobre uma das mulheres que me criou.

E depois vem toda uma vida:

O cheiro do feijão, o cheiro da galinhada, as viagens para Santa Catarina comprar roupas, a salada que eu nunca gostava do tempero, o churrasco que ela cuidava no domingo porque meu avô não tinha paciência para esperar, ela vendendo roupas, eu chegando da escola e indo até a casa dela só para dar um oi, os doze degraus da escada da casa dela que eu subia inúmeras vezes por dia, doze, exatamente doze, nem mais, nem menos, o dia em que ela comprou bisnaguinhas pra mim quando fiquei doente, a visita que eu fazia para ela antes das festas para ela me ver arrumada, o outro dia quando ela me informava o horário que eu havia chegado das festas - eu nunca sabia - e ela me cobria, sempre me cobria, porque só contava para mim, a chave guardada em cima de uma madeira na varanda (o chaveiro branco), as flores que ela cuidava tão bem, o celular de abrir e fechar preto da Nokia, as unhas dos pés vermelhas, o rádio com vinil no quarto, o óculos cor-de-rosa, as saias dela, as saias que eu ganhei dela!, a bagunça no amigo secreto porque ela queria que eu pegasse minha irmã, a única vez que vi ela chorar - quando meu avô morreu -, todas as vezes que eu olhava pela janela do meu quarto e via ela e meu avô tomando mate, e depois só ela... 

E a época em que ela começou a perder os cabelos por causa da quimioterapia e meu avô raspou o cabelo dela e eu vi a cena, pela janela. O chazinho com bolachinhas que ela me dava quando eu ia posar na casa dela, e também quando eu não ia, mas estava lá. A carteira verde surrada, o sarcasmo indireto, as piadas, a agenda das contas das clientes, o café açucarado, a gemada, a maionese!, as manhãs em que ela chegava de viagem, os cafés da manhã que eu tomei na casa dela, as mil vezes que ela me buscou em qualquer lugar que eu estivesse, a qualquer hora. O jeito que ela chamava eu e as minhas irmãs, isso é o que mais me faz chorar; "Alessandrinha, Julianinha, Marianinha", com aquela voz que só ela sabia fazer! Só ela! Os pulos na janela...

E então vem a morte, e o que fica é o que ela ensinou: tudo é fácil demais, você tem um problema, não tem!, empurra ali, ajeita aqui e pluft:

o problema some! contorna-se, é possível ultrapassá-lo.

Você não precisa de muito dinheiro para viver bem e feliz, você precisa de sede de vida para viver bem e feliz: se alguém te dá algo, você o recompensa, se nunca te deu e precisa, você o ajuda! Mexa-se! Minha vó Tina fazia quimioterapia e no mesmo dia saía por aí de carro porque "não queria ficar sentada, esperando a morte chegar", hoje penso que talvez ela só não aguentasse a tristeza da solidão sem meu avô. 

E essa véia ria, vou te contar! Tudo era alegria, e quando eu chegava de Santa Maria a primeira coisa que eu fazia era ir até a casa dela, sentar na frente do fogão à lenha, comer a galinhada feita lá... e ela sempre mandava alguém ir me buscar na rodoviária - mesmo a rodoviária sendo dois passos da minha casa -, e eu chegava na casa dela e lá estava ela; sentada no sofá, com aquele sorriso massa, que sempre foi dela e me pedindo para contar as novidades. E ela amava o inverno! Acendia a lareira e o fogão à lenha dentro de casa e para completar, outro fogão à lenha fora de casa para cozinhar nos dias de janta, que olhando para trás, eram quase sempre! E aguentou uns perrengues... Meu vô era meio faca na bota, mas eles se completavam da maneira deles. Uma lembrança que eu tenho é a de um dia quando eles estavam sentados abraçadinhos no sofá vermelho da sala deles, me marcou. Figuraças! Cada história... E quando eu fui estudar em Santa Maria ela me ligava quase toda a noite para perguntar o que eu estava comendo, se eu ia voltar logo para Panambi, o que eu tinha feito o dia todo... Ela sempre ligava.

Minha vó ficou doente antes do meu vô e ele foi antes encontrar as estrelas, homem, às vezes, é bicho tosco, vai dizer, ele sabia que sozinho não ia aguentar o tranco.

Tem um negócio na minha garganta, e não é nada que possa ser engolido com água, é choro contido, o maldito é dolorido, dou uns suspiros e, sabe, dói menos. E esse texto também me ajuda.

No dia da morte dela fui para casa depois de um dia inteiro abraçando amigos queridos e alguns desconhecidos, fui dormir na cama dos meus pais, e ao deitar, sozinha, na minha cabeça o rosto dela virava um monstrinho preto, e eu não conseguia, não podia controlar isso, virava assim, como se o cérebro não fosse meu, como se os pensamentos fossem de outro. Aquele caixão a deixou diferente... magra, tadinha! Passei um tempo bem grande tentando fazer o rosto parar de se transformar, e quando não consegui, tentei só que ele se transformasse em outra coisa. 

Começou a dar certo! E aos poucos, na minha cabeça, minha Vó Tina virou uma borboleta azul.