La cuando no, la cuando nunca, la siempre en domingo, la Teté, la Totó, la Milú, la Chumilú, pero para ti… Dona!
São tempos de crise. Não é novidade, sabemos. No Brasil, a crise é política, econômica e sanitária, a crise é, inclusive, estética. Junto à crise, repressão: repreende-se o corpo que protesta, repreende-se aqueles que reivindicam a vida, a ciência, repreende-se quem pergunta, quem questiona o uso da força pelo estado, quem reivindica maior controle sobre as polícias, sobre o suposto uso legítimo da força. Repreende-se a curiosidade.
Contudo para nós, latino-americanes, não é novidade. Aqui repreende-se de novo. São as nossas feridas abertas, que, nunca cicatrizadas, ainda sangram mesmo após o fim das ditaduras. No Brasil, especialmente, porque aqui lembramos pouco. Houve pouco espaço para memória e menos ainda para justiça. Quando tentamos, não nos deixaram lembrar e quando conseguimos, como Argentina, nos repreendem chamando-nos de vingativos e presos ao passado. Repreende-se porque, como diríamos nas Relações Internacionais, o controle civil democrático é frágil, porque nossa possibilidade de reivindicação aos atores estatais para que o uso da força ou violência interna não aconteça permanece constrangida.
São em tempos assim que Tengo Miedo Torero (2020) navega. Entre a repressão, o uso da força pelo estado e a liberdade, o filme relata os (des)amores de uma mulher trans durante a ditadura no Chile. Dirigido pelo chileno Rodrigo Sepúlveda e baseado no livro homônimo de 2001 de Pedro Lemebel, o longa intervém na nossa realidade trazendo, além da memória sobre o passado, o sopro de arte para nos dar subsídio para viver o presente.
Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia, coloca que para passarmos da ingenuidade para a criticidade deve haver uma “rigorosa formação ética ao lado sempre da estética [...] decência e boniteza de mãos dadas”. Atualmente, permeados por símbolos ufanistas, militares no governo, cortes financeiros às artes e às ciências e declarações violentas do presidente, falta-nos boniteza e, junto a isso, decência. Palavras de Freire que possibilitam pensar que arte e liberdade são essenciais para um enfrentamento crítico da repressão que o governo de Bolsonaro representa.
Tengo Miedo Torero
“La cuando no, la cuando nunca, la siempre en domingo, la Teté, la Totó, la Milú, la Chumilú, pero para ti… Dona!” Assim apresenta-se La Loca del Frente, a protagonista do filme. La loca é uma mulher trans, que encontra, na noite chilena, Carlos, um arquiteto mexicano, guerrilheiro opositor à ditadura Pinochetista. Entre a paixão (de la Loca) e os sentimentos mistos, entre a entrega e a manipulação (de Carlos) a relação deles se constrói. La loca demonstra ao longo do filme estar ciente que a relação entre eles é uma armadilha, para Carlos, aparentemente, o envolvimento é sempre limitado por sua masculinidade heterossexual.
La loca, apesar de irreverente e até inconsequente frente aos militares de Pinochet, não adota, em nenhum momento, um olhar romantizado sobre a violência, assim permite envolver-se em um romance, no contexto da ação contra a ditadura - sabendo dos perigos de se apaixonar por um homem aparentemente heterossexual.
Lemebel, escritor chileno autor do livro, realizou inúmeras performances durante a ditadura do Chile, partindo de sua existência homossexual, mas atravessando, com suas intervenções, a memória, os direitos humanos e a democracia junto com a sexualidade.
Assim, o filme navega entre a represssão e liberdade, ao passo que também nos permite perceber como somos seres políticos e amorosos ao mesmo tempo - nesse sentido, ao meu ver, dialoga com Freire, que não só a amorosidade defendia, mas tambem a luta radical contra as opressōes e a possibilidade de, nesse processo, sentir raiva. Sensível, profundo, potente - la dona sin nombre tem meu coração.
Texto de Alessandra Jungs de Almeida, 2021.